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Há dois Natais. Um que tem uma face pagã e outra cristã. Em termos cristãos, nele se celebra o nascimento de Cristo na terra ou, segundo os místicos, o nascimento do divino na consciência (como escreveu Angelus Silesius: “Que me importa que Cristo haja nascido ontem em Belém, / Se não nasce hoje na minha alma?”). Em termos pagãos, a celebração que foi cristianizada é a do Solstício de Inverno, ou seja, o renascimento simbólico do Sol Invictus após a sua simbólica morte: ou seja, o renascimento do próprio mundo, quando a energia vital que há nos seres e nas coisas, após declinar e se recolher, inicia um novo ciclo de expansão. O Deus cristão foi depois visto como um Deus crucificado, apontando um caminho de ascese e renúncia ao mundo, em prol de uma salvação sobrenatural, acessível apenas aos homens, destinados a uma eternidade separada dos animais que lhes serviram de companhia, alimento e força de trabalho. Todavia, como se assinala na inspiração franciscana do Presépio, ele veio ao mundo numa gruta, símbolo das profundezas da Natureza, primeiro que tudo aquecido e protegido pelos animais, uma vaca e um burro: poderoso símbolo de uma fraternidade divino-humano-cósmica, ainda por cumprir, tal como igualmente se expressa no “Jardim das Delícias”, de Bosch, ou nos quadros de Chagall, entre outros.
Este Natal, pagão ou cristão, implica sempre um (re)nascimento iniciático, uma metamorfose da consciência e das energias profundas do ser, um mundo ao arrepio das convenções, rotinas e usos comuns, em que a libertadora experiência do sagrado consiste em ridicularizar aquilo a que se está apegado como mais sagrado. Não é por acaso que, ainda na Idade Média cristã, o Natal coexistia, no período da libertas decembrica, com as Festas dos Loucos, celebradas de meados de Dezembro até à Epifania, em 6 de Janeiro, com comida, bebida e danças dentro das igrejas e em cima dos altares, missas paródicas com burros a zurrar, homens vestidos de mulheres e mulheres vestidas de homens, crianças entronizadas como Imperadores dos Inocentes, a quem os adultos e a hierarquia eclesiástica tinham de obedecer, etc. Progressivamente proibidas nas igrejas, acabaram por originar o Carnaval moderno, tendo sido a forma medieval e cristã do mundo às avessas que é ritualizado em muitas tradições e culturas como forma de recordar e vivenciar o regresso cíclico do cosmos ao Caos primordial ou ao Tempo das Origens onde tudo é puro, sagrado e possível e a liberdade, a metamorfose, o jogo e a festa predominam sobre a rígida delimitação do sagrado e do profano, do divino, do animal e do humano e dos papéis psicológicos, sociais e cósmicos, com a vida orientada para o trabalho e a produção. Correspondendo ao solstício de Inverno, herdam a memória de mais antigas festividades pagãs, de sentido carnavalesco, como as Saturnais, onde se celebrava o regresso à abundância e inocência da Idade do Ouro, com a troca de presentes e o travestimento de homens e mulheres. Festividades ainda bem presentes no Nordeste transmontano, de cuja inversão da ordem se acredita depender a renovação das energias humanas e cósmicas, a fertilidade das mulheres, dos animais e dos campos. Como ainda hoje se diz em certas aldeias de Trás-os-Montes, por ocasião das tropelias e mascaradas praticadas nas Festas dos Rapazes e outras: “É Natal, ninguém leva a mal!”. Um Carnatal, como pude presenciar…
Estas festas, tradicionais e iniciáticas, para além da catharsis das pulsões reprimidas, podemos entendê-las como convites à transmutação da consciência que assume e liberta a sua iluminada ou divina natureza primordial, anterior a qualquer estado, condição ou limite, anterior a qualquer máscara, ego e personalidade e sua projecção de um mundo ilusoriamente considerado como exterior, real e objectivo. O Louco simboliza bem, como na carta do Tarot, essa natureza primordial da mente, não egocentrada, sem centro nem periferia, tão livre e infinita como o espaço, tal um zero metafísico e pré-existencial que, por não ser nada, pode a cada instante imaginar-se e tornar-se tudo, como assume Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”. Aquilo que todos somos: Todo o Mundo – Ninguém.
O Louco ou a Criança. Porque a Festa dos Loucos é a festa da coroação das crianças como detentoras da suprema autoridade, com a inversão das funções e relações habituais entre as classes etárias e sociais. A exemplo do ensinamento de Lao Tsé, Cristo e Agostinho da Silva. Tal como acontecia e acontece na Festa do Espírito Santo, sua directa herdeira no Ocidente, fundada pela rainha Santa Isabel e levada para os Açores, Brasil e América. Preservada ainda hoje no Penedo, perto de Sintra, com a mácula da tourada à corda. A Festa onde Agostinho da Silva viu a simbólica antecipação do futuro que todos desejamos: a libertação de todas as prisões, a igualitária partilha da abundância, a coroação e a sacralização da infância, ou seja, da inocência, da liberdade e da imaginação criadora.
Este é o espírito e o simbolismo profundo do Natal, do Presépio, da Árvore de Natal, imagem do axis mundi que liga Céu e Terra e passa em cada uma das nossas colunas vertebrais. O simbolismo da troca de prendas, da festa da infância e da abundância, da comunhão na alegria, na solidariedade e na despreocupação.
O outro Natal é o que hoje temos à nossa volta, a deturpação deste e do seu espírito num (fim de) ciclo de civilização em que o crescente vazio interior de mentes sem imaginação, amor e sabedoria se busca ilusoriamente compensar por um produtivismo e consumismo galopantes e ávidos, que alimentam uma economia regida por especuladores e agiotas, financiam guerras, trucidam milhões de seres vivos e envenenam e enchem de lixo o planeta para uma Consoada e um dia de Natal de embrutecimento e esquecimento da vida triste e opressiva levada em quase todos os restantes dias do ano. No fundo, e ainda, uma grande Festa de Loucos, mas não de Loucos sábios e livres, antes de Loucos patológicos que buscam libertar-se com aquilo que mais os escraviza, ofusca e aliena.
Importa contudo ir além do moralismo estreito e estéril e ver, através dum Natal e duma Festa de Loucos, o outro Natal e a outra Festa de Loucos cuja saudade no fundo secretamente move a avidez e a alienação deste grande Holocausto consumista. E, serenamente, transitar de um para o outro, sendo feliz e tornando-se contagioso. Ou seja, transitar das prisões do ego e das suas ilusões, individuais e colectivas, para a Grande Festa do Livre Espírito, na infinita comunidade de todos os seres vivos, da Vida e da Natureza. E dar expressão a isso, transformando o mundo-manicómio onde vivemos e antecipando nele alternativas ao seu colapso iminente. Com toda a sabedoria, amor, criatividade e riso de que formos capazes. Rir, sobretudo, de nós próprios.
FELIZ NATAL! LIBERTADORA FESTA DOS LOUCOS!
Paulo Borges
Paulo Borges é filósofo e escritor. Professor no Departamento de Filosofia e investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Presidente da Associação Agostinho da Silva e da União Budista Portuguesa. Vice-presidente da Associação Interdisciplinar para o Estudo da Mente. Director da revista Cultura ENTRE Culturas. Coordenador do Movimento Outro Portugal. Co-fundador e membro da Comissão Coordenadora do Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN).