terça-feira, 30 de agosto de 2011

o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto

sábado, 27 de agosto de 2011

telepatia



Telepatia/ Silêncio calma
Feitiçaria/Da tua alma

Passo a passo/Sem ter medo
Abrimos, soltámos/O nosso segredo

E a sorrir/ Devorámos o mundo
Num abraço/ Tão profundo

Telepatia/ Sem contratempo
Deixei-te um dia/ Num desalento
E eu sonhava/ Existia
Pra sempre pra sempre/Foi pura poesia

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

o lugar da casa



Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia

Eugénio de Andrade

terça-feira, 23 de agosto de 2011

o haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes, 1962


imagem:Jerry Uelsmann


domingo, 21 de agosto de 2011

Vide Gal



Rio, rio, rio
Rio pra não chorar
Pra quem não sabe sou rio
A cantar

Sou do Flamengo
Sou ali em Botafogo
Sou da casquinha do ovo
E essas flores
Na Rocinha vou plantar
Quem olha minha barraca
No morro de Santa Marta
Quer morar

Se tenho fome
Como logo o Pão de Açúcar
Urro no topo da Urca
Se quero abraço
Tenho o Cristo pra abraçar
Tamborim pra ti tarol
Escolados pelo sol
Rio e morro de amar

Rio, rio, rio
Rio pra não chorar
Pra quem não sabe sou Rio
A cantar

(gracias, Luisa)

Caxambu é o tambor cerimonial maior ou principal utilizado na manifestação cultural afro-brasileira denominada Jongo (a qual inclusive empresta o nome em algumas regiões). Seu nome talvez seja uma transliteração de Tchinguvo (Ka-Tchinguvo), grande tambor tradicional, incumbido da transmissão de mensagens a longa distancia, utilizado pelo povo Kimbundo da República de Angola
(Origem: Wikipédia)

sábado, 20 de agosto de 2011

menina dos olhos d'água



Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar

menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno
rijo e tenro que nem sei explicar

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol
tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo

aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
és um rio cheio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

as palavras

o preço de uma pessoa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras. Lê-se nos olhos das pessoas. As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um.

Almada Negreiros em “A invenção do dia claro”

terça-feira, 16 de agosto de 2011

quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão…Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo…e tudo errou…
– Ai a dor de ser–quase, dor sem fim… -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as serradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol – eu fora brasa,
Um pouco mais de azul – eu fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Mário de Sá-Carneiro in Dispersão

[porque este poema me foi recordado por dois amigos quase simultaneamente e porque tenho amigos a quem não falta um golpe de asa]

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Ce qui ne peut être dit
ce qui ne peut être donné dans les mots
ce qui ne peut trouver lieu dans notre langue

a son mouvement dans le mouvement de l’écriture

Là où rien ne peut être retenu
là commence la musique
de ce qu’on ne peut dire

Jean-Louis Giovannoni







sexta-feira, 12 de agosto de 2011

el espejismo

Ciudad de las Artes y las Ciencias, Valencia

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Canções que se ouvem, rápidas a passarem. Rimas feitas e desfeitas, o que não sai da pele, o que fica no céu azul, o que cola à pele, o que fica gravado como um sinal de quem se encontra no meio dos sonhos.

Às vezes espera-se a madrugada, que a noite passe; de outras espera-se o fim dos caminhos, à espera da noite. É tão de repente que se vêem as coisas perfeitas.

Francisco José Viegas in “A Noite o Que É?”



Mértola 2011

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Um motorista somaliano faz anos e cumpre o seu circuito habitual sem suspeitar que a carris lá do sítio lhe prepara uma surpresa com a cumplicidade dos passageiros habituais, que manifestam assim a estima que lhe têm.
Passa-se na Dinamarca e este é também o nosso mundo….


terça-feira, 9 de agosto de 2011

ó noite


imagem de CelineM

Ó noite, flor acesa, quem te colhe?
Sou eu que em ti me deixo anoitecer,
Ou o gesto preciso que te escolhe
Na flor dum outro ser?

Sophia Mello Breyner

domingo, 7 de agosto de 2011


levada das 25 fontes, Madeira

Ela queria construir a estrela da sua integridade sobre
o dorso do tempo. Repousava na embriaguez da sua
espera, respirava o frémito de um silêncio amoroso.
No limiar da dança, comtemplava os minúsculos
astros da sua morada nua. Caminhava abraçando o
espaço e modelando no ar a sua identidade de água
errante. Ela construía o reconhecimento de uma
aparição que fosse a evidência do seu olhar aberto e
livre.

António Ramos Rosa in “o que não pode ser dito”

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

eu pescador


Tamandaré

Eu pescador que pesco por um instinto antigo
e procuro não sei se o peixe se o desconhecido
e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo
sem o saber o nome proibido.

Eu que de cana em punho escrevo o inesperado
e leio na corrente o poema de Heraclito
ou talvez o segredo irrevelado
que nunca em nenhum livro será escrito.

Eu pescador que tantas vezes faço
a mim mesmo a pergunta de Elsenor
e quais águas que passam sei que passo
sem saber a resposta. Eu pescador.

Ou pecador que junto ao mar me purifico
lançando e recolhendo a linha e olhando alerta
o infinito e o finito e tantas vezes fico
como o último homem na praia deserta.

Eu pescador de cana e de caneta
que busco o peixe o verso o número revelador
e tantas vezes sou o último do planeta
de pé a perguntar. Eu pescador.

Eu pecador que nunca me confesso
senão pescando o que se vê e não se vê
e mais que peixe quero aquele verso
que me responda ao quando ao quem ao quê.

Eu pescador que trago em mim as tábuas
da lua e das marés e o último rumor
de um nome que alguém escreve sobre as águas
e nunca se repete. Eu pescador.

Manuel Alegre, Oitavo Poema do Pescador in "Senhora das Tempestades"

terça-feira, 2 de agosto de 2011

segunda-feira, 1 de agosto de 2011



Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas — podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia — e essa é a verdade — cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

Daniel Faria