quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

a flor da nespereira


Tereza, és tu?

Oiço essa voz familiar debruçada no corrimão do 2º andar. Sim sou eu, Vó, respondo enquanto subo os degraus de madeira desta casa antiga que me conhece tão bem.

Todas as quartas-feiras visito a minha avó. Chego depois do trabalho, enrosco-me no sofá que conserva o molde do meu corpo de criança e fico ali em conversas soltas. Como estão todos, estás tão magrinha filha, trabalhas tanto, vai falando sem esperar resposta. Às vezes trago trabalho atrasado e não falamos. Fica sentada à varanda sobre a rua movimentada a ver os carros e as pessoas passarem. O canário e a velha nespereira completam o quadro que vejo quando levanto o olhar do que faço. Esta nespereira surgiu miraculosamente duma semente deixada cair ao acaso num pequeno vaso. Cresceu e todos os anos dá flor e fruto para espanto de todos. Flores lindas e perfumadas e três ou cinco nêsperas doces que deixam água na boca.

A casa da minha avó, em Novembro, tem o cheiro da flor da nespereira. Sobre que escreves tu neta, pergunta de quando em vez. Sobre tudo e sobre nada respondo. Escrevo-me. Vejo a perplexidade no seu olhar cor de mel mas oiço a sua doce voz dizer, entendo. Aprendi com a minha avó a arte de entender. E a de aceitar. Aceitar o que não tem explicação ainda e entender o que não posso mudar.

Hoje estou sozinha nesta casa. O silêncio ecoa nas paredes. As memórias vão e vêm. É quarta-feira. A rua continua movimentada. Carros e pessoas continuam a passar. Trago os meus cadernos, sento-me a escrever. Olho para a janela.

Há dez Outonos que a minha avó não vê florir a nespereira.


Imagens que aparecem e desaparecem
(reflexos de luzes confundem o meu silêncio)
de castelos perdidos no tempo
que albergam criaturas assombradas
que assustam as crianças à noite

quem se atreve a procurar o menino perdido?

O homem, que sem se saber encontrado
segura entre as suas mãos o seu destino
segura entre as mãos a sua alma de menino

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010



Um poeta é um rouxinol que se senta na escuridão, e canta
para se confortar da própria solidão com seus próprios sons.
Seus ouvintes são homens arrebatados pela melodia de uma
música invisível, que se sentem comovidos e em paz,
ainda que não saibam como nem e o porquê.

Percy Bysshe Shelley

sábado, 20 de fevereiro de 2010

parabéns



Arami
minha bela amiga

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

envelhecer



Envelhecer o que é?

Um somatório de anos? De sonhos e desilusões? Cicatrizes e rugas?
Ter tempo ou já não ter tempo? Sabedoria ou esquecimento?
Mãos em concha nos ouvidos? Olhos que pedem distância para poder ler?

Ou parar de aprender qualquer que seja a idade? Envelhecer é desistir?
Ou é uma oportunidade? De Ser em vez de fazer. De Ser em vez de ter.

Ajudem-me! Digam-me! O que é para vós envelhecer?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A Criança Que Ri na Rua



A CRIANÇA que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer cousa de amor,
Ainda que o amor seja mudo

Fernando Pessoa

domingo, 14 de fevereiro de 2010



Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria:
''Porque era ele, porque era eu''.

Michel de Montaigne

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Rig Veda



Embora meu espírito possa viajar pelos quatro cantos da
terra,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu seja
capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe sobre o mar,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu seja
capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe até os
cintilantes raios de luz,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe para visitar o
sol e a madrugada,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa viajar até as montanhas
elevadas,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe no interior
de todas as formas que vivem e se movem,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe até reinos
distantes,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

Embora meu espírito possa ir muito longe até tudo
aquilo que é e está por ser,
Que ele possa voltar para mim de novo para que eu
seja capaz de viver e viajar aqui.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

poesia XXII

foto yuri bonder

Não me procures ali
onde os vivos visitam
os chamados mortos.
Procura-me dentro das grandes águas.
Nas praças,
num fogo coração,
entre cavalos, cães,
nos arrozais, no arroio,
ou junto aos pássaros
ou espelhada num outro alguém,
subindo um duro caminho.

Pedra, semente, sal passos da vida.
Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

haiku - poesia japonesa

sobre o Haiku

A primeira antologia conhecida remonta ao ano 756 da era cristã. Nesta, a forma dominante é a do tanka. O tanka é um poema breve de cinco versos. Por volta do séc XV o tanka deu lugar ao haikai-hokku, poema de dezassete sílabas (5-7-5), resultante de um jogo de grupo em que os praticantes se iam respondendo uns aos outros e cuja temática decorre fudamentalmente da vida social.

Foi Bashô (1644-1694) que elevou o hokku à forma de haiku. Bashô filho de samurais, aos dezasseis anos, ferido pela morte de um grande amigo, retirou-se para um templo budista. Passa a viver de modo errante e a sua vida é feita de contemplação. Uma experiência tão radical só pode ser traduzida em linguagem próxima do silêncio - é a palavra em estado nascente. Daqui o sublime desta poesia.
Segundo Bashô um poema deve revelar num mesmo movimento o imutável, o infinito, a eternidade que nos escapa e o efémero da matéria de que tudo é feito.. Esta poesia é ainda um sopro da alma que se compraz na harmonia do pensar e do ser.
O haiku é o testemunho de um drama intímo do ser que se revela na palavra. Na sua brevidade sugere mais que afirma, na sua leveza inscreve mais do que escreve.
Haiku, palavra viva situada no interior da própria vida. O sublime pode ser alcançado a todo o momento e em todos os lugares. Por isso, esta poesia é também uma forma de felicidade, do encontro. Feliz é quem pode experimentar nos momentos mais banais da existência e nos seres a presença do infinito. E vivê-lo é mais do que entendê-lo.

(fonte:haiku uma antologia de Manuel Silva Terra)


Este dia tão longo -
demasiado breve ainda
para o canto da cotovia!

Matsuo Bashô

Ao matar uma mosca
feri
uma flor

Kobayashi Issa

domingo, 7 de fevereiro de 2010

o louco



Me perguntas como me tornei um louco. Foi assim: Um dia, muito
tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um
sono profundo e notei que todas as minhas máscaras haviam sido
roubadas . As sete máscaras que eu havia confeccionado e usado
em sete vidas.

Corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando: ’Ladrões,
ladrões. Malditos ladrões!’

Homens e mulheres riam de mim e alguns corriam com medo para
suas casas. Quando cheguei à praça do mercado, um menino
trepado no telhado de uma casa gritou: ’Você é um louco!’

Olhei para cima para vê-lo. O sol brilhou pela primeira vez em meu
rosto descoberto.

Pela primeira vez o sol beijava meu rosto nu, e minha alma se
encheu de amor pelo sol, e nunca mais desejei usar máscaras.
Assim me tornei um louco.

E encontrei tanto liberdade como segurança em minha própria loucura.
A liberdade da solitude e a segurança de não ser compreendido.
Pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.

Gibran Khalil Gibran

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

para Arami


;)

o que fazer


quando se tem dois meses de baixa?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

para kend-ito

nos sanamos
cada vez que podemos ver
em cada dia que nasce
a possibilidade de ser
um dia perfeito

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

os quatro búzios




Saltitava descalça pela areia. Dava pequenos gritinhos quando a água salgada molhava a bolha enorme que tinha no dedo grande do pé. Ui, ui como ardia! Mas ela sabia que se desse um grito doía menos. Não percebia porque os adultos não gritam quando têm uma dor.

O dia tinha acabado de nascer. No céu uns fiapos brancos. O vento tinha levado as nuvens escuras e a chuva da noite passada. As ondas brincavam com a areia e salpicavam o seu rosto, os seus cabelos. E ela ria, ria.

Foi nesse instante preciso, naquele momento preciso que os seus olhos se fixaram na areia e os viram. Eram quatro! Quatro búzios desenterrados pelas ondas. E nesse preciso instante lembrou-se. Lembrou-se deles. Dos seus quatro amigos que se mascaravam de adultos e bricavam lá longe num país distante.

Sentou-se e cuidadosamente pegou em cada um deles. Levou cada um ao ouvido. E escutou. Escutou o som do mar. Um sorriso travesso pousou nos seus lábios. Todos tinham um som diferente.

Ouviu o som do mar ao nascer do sol. O som que o mar tem quando se sente aquecido, a espreguiçar-se, a sorrir ainda desacordado. Um som suave do mar. E pensou, este sei quem é.

Outro búzio outro tom. O som do mar a meio da manhã. Completamente acordado. As ondas a desafiarem a areia, a descobrirem conchas e búzios e conquilhas. A rebentação das ondas. O som de risos. O mar também sabe rir. E pensou, este sei quem é.

E este? O som do mar à noite revolto. Ondas que tentam vencer os recifes. Uma e outra vez e outra vez. O som das tempestades. E o som que fica depois. E pensou, este sei quem é.

Encostou o último búzio ao ouvido. E escutou o som das marés. Praia mar baixa mar. A lua a chamar as marés. Marés vivas marés calmas. Marés conhecidas marés por descobrir. E pensou, este sei quem é.

As suas mãos pequeninas uniram-se em concha e trouxeram os búzios para casa. Guardou-os no fundo da mala para quando regressasse. Não sabia como mas um dia seriam deles.

E veio ao pé coxinho ter comigo. A bolha do dedo grande do pé estava a crescer, cada vez maior, enorme…