sábado, 30 de janeiro de 2010



Tinha a face marcada pelas rugas do tempo. Os cabelos grisalhos atados num desalinho perfeito. As linhas da mão desapareciam num futuro por contar. Caminhava com passos firmes num andar cansado. Era noite. De lua cheia. Ouvia-se o mar. Cada vez mais perto.

Esperava por ela. Quando chorei por ti , disse-me.

Eu sabia que ela me conhecia muito bem. Conhecia-me quando estava sozinho. Conhecia-me quando eu pensava naquilo que nunca contei a ninguém.

Ao pé do mar, dentro do mar como se estivessemos dentro de nós próprios ela falava. O tempo passava. A noite deixou de existir. E eu que a conhecia tão bem gostaria de lhe dizer que não tivesse medo. Da noite. Do tempo.

Pousei os braços sobre os seus ombros. Desci as minhas mãos nas suas costas. O tempo deixou de existir. As palavras deixaram de existir. Ficamos parados no olhar. Vimo-nos como se nos encontrássemos. Como se nos tivessemos perdido há muito tempo e nos encontrássemos.

O tempo deixou de existir.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

coisas simples


ver o sol nascer no mar

coisas simples

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010


avançar no silêncio penetrar no sonho
voar ir além
ouvir os murmúrios
dos sorrisos das lágrimas
as almas têm som?
olhar e ver ouvir e escutar

regresso a casa


Pés a chapinhar na água. Passeios sem destino. Corpo abandonado sob o sol morno ao cair da tarde.Espírito livre, livre a sobrevoar o mar que é sempre calmo. Calmo e quente. E perfumes. Cheiros. A café da manhã acabado de fazer. A frutas tropicais. E sons. O silêncio do momento parado. A vida por acontecer. O céu à noite repleto de estrelas. Um sopro de brisa. Um salpico. E a cancela da minha casa aberta. Sempre aberta à minha espera. Regresso a casa.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010



Colhe e leva esta pequena flor, não demores!
Receio muito que ela se incline e desfaleça na poeira.
Talvez ela não encontre lugar na tua grinalda;
honra-a, porém, com um toque dorido da tua mão
e colhe-a.
Receio muito que o dia termine antes que eu o
perceba, e que passe a hora da oferenda.
Embora não seja intensa a sua cor e seja débil
o seu perfume, serve-te assim mesmo desta flor
e colhe-a enquanto é tempo.

R. Tagore

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

para atravessar contigo o deserto do mundo




Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

calma



Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?

Fernando Pessoa in "Mensagem"

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

o retorno à nossa natureza



O Universo, e tudo o que nele existe, pulsa.

Tudo tem um ritmo. Qualquer corpo ao realizar uma troca com o seu meio, dentro do seu próprio ritmo, o faz em sintonia com o ritmo cósmico. Como um corpo só. UNO.

A palavra Universo significa versus uno, em direcção à Unidade.

O sentido deste caminho encerra uma proposta evolutiva que é guiada por um ritmo circular e espontâneo. A espontaneidade desse pulsar resulta da aceitação de troca que é intrínseca a todo o processo evolutivo.

Nas relações atómicas, moleculares, humanas, sociais, políticas, etc. tudo tem origem num determinado tipo de troca. Essa troca produz vibração, energia, ritmo. É na troca de oxigénio que o calor é produzido no nosso corpo, calor que nos mantém vivos, no pulsar do coração, no pulsar da vida. Toda a natureza está plena de ritmo. É esse ritmo pulsátil que cria as formas, as cores, os temperamentos, as oscilações, os amadurecimentos, as colheitas.

Pulsar é inspiração e expiração do cosmos, é contracção e expansão. Quando estamos em sintonia com a nossa essência, sentimos a vibração do universo. E tudo acontece... a seu ritmo, a seu tempo.

A respiração leva-nos ao encontro desse ritmo espontâneo.

A contracção intensa, seguida de expansão plena, o movimento de vai e vem, de entra e sai, de inspirar e expirar sintoniza-nos com o holos.
A perda de paciência, de saúde, de amor, de humor é uma perda de contacto com o nosso próprio ritmo.

Respirar plena e livremente é o único segredo da consciência. Detectar o próprio ritmo é descobrir a própria partição na sinfonia do universo. Este movimento “espontâneo” é a chave de todo o bloqueio.

Sentimos este pulsar da vida, espontâneo e integrador como redondo. Um movimento circular, de união, simbiótico que nos devolve à nossa essência harmoniosa.
Quando nos sentimos unos, sentimo-nos redondos.
O movimento da respiração é redondo, o abraço é redondo, o beijo é redondo.

Talvez possamos, então, afirmar que a nossa natureza é redonda.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

algum dia

foto: Vladmir Kush

Algum dia, quando tivermos dominado os ventos, as ondas, as marés e a gravidade... utilizaremos as energias do amor.
Então, pela segunda vez na história do mundo, o homem descobrirá o fogo.

Pierre Teilhard de Chardin

domingo, 10 de janeiro de 2010




No auge da tempestade
há sempre um pássaro para nos tranquilizar
É a ave desconhecida
Que canta antes de voar

René Char

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010


Em algum lugar há uma distância de tempo imensa:
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferença.....

Robert Frost

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

a casa dos beijos



Iam os dois pela rua, de mãos dadas. Dir-se-ia que não pisavam o chão. Dir-se-ia que deslizavam, que vogavam, que voavam. A felicidade estava-lhes cunhada nos rostos; e também nos gestos, nos sorrisos, no olhar. Iam de mãos dadas pela rua e iam muito felizes.

Ela tinha os cabelos longos e soltos, o tronco alto. Os seios puxados para a frente, as pernas esbeltas e livres, saias curtas. Ele era um pouco mais alto, um pouco apenas, camisa aberta, calças de ganga, uma pequena mala, daquelas malas dos antigos guarda-freios da Carris, a tiracolo. Isso: a mala estava a tiracolo, e eles iam muito felizes, os dois, de mãos dadas.

Nem sequer reparavam que muitas pessoas os observavam. Algumas pessoas com a conivência de um sorriso. Outras pessoas com um ressaibo de inveja, no olhar de esguelha. Pararam um pouco em frente à Pastelaria Suíça, no Rossio, ele disse qualquer coisa a ela, ela encolheu os ombros. Não deixavam de sorrir enquanto conversavam. Depois entraram e beberam café.

A esplanada da Suíça estava cheia de sol e de estrangeiros. Um vendedor de lotaria ofereceu jogo. Um rapaz sujo pediu algum dinheiro. Dois homens encontraram-se e abraçaram-se com efusão. Uma mulher apressada deu um encontrão num cego. Um cigano tentava vender relógios. Um polícia contemplava as coisas com evidente indiferença.

O rapaz e a rapariga decidiram, depois de tomar café, passear pelo Rossio. Estavam muito felizes. E é bom que se repita isto, porque as pessoas, habitualmente, andam para aí cheias de infelicidade, ao menos que haja alguém feliz, mesmo que seja uma ou duas pessoas.

Passeavam pelo Rossio e, de vez em quando, davam beijos, sempre sorrindo um para o outro, como se estivessem a sorrir para todo o mundo, e todo o mundo experimentava uma grande sensação de espanto e de júbilo. Paravam junto às montras do Rossio, olhavam, claro, mas não fixavam nada do que nas montras se expunha, só sabiam um do outro, só estavam ali juntos para apenas estar um com o outro, juntos e assim mesmo: de mãos dadas e aos beijos.

Foi numa dessas ocasiões. Beijavam-se tão felizes, tão um do outro, que essa felicidade molestou uma senhora obesa e flácida. A senhora obesa e flácida estacou, indignada, a fuzilá-los com as balas do ódio. E gritou:

— Não podiam fazer isso em casa?

A rapariga dos longos cabelos e seios puxados para a frente deixou o beijo a meio. O rapaz experimentou uma estranha sensação de pasmo. Olharam-se. E foi então que a rapariga respondeu, indicando tudo em derredor:

— Esta é a nossa casa!

Nesse instante trémulo, o mundo feliz, começou a aplaudir.

Baptista-Bastos, Lisboa contada pelos dedos (2001)

sábado, 2 de janeiro de 2010




Um dia igual aos outros. Levanto-me e abro a janela. Gestos mecânicos que se repetem. Lá fora o tempo é cinzento. Um nevoeiro fininho envolve tudo em redor. A brisa molhada entra pela janela mas nem a sinto.

Passos iguais. Detenho-me no espelho. Olho para ele. Olho para mim. Não vejo as formas. Olho nos meus olhos. Olho para dentro dos meus olhos.

E vejo florestas densas. E vejo animais selvagens. E oiço sons primitivos de tambores. Vejo terra seca e pés negros descalços que dançam no ritmo ancestral de invocação dos deuses. Vejo fogo. E vejo o vento que agita os ramos das árvores altas que crescem rumo ao céu. Vejo a Natureza, fundo-me com a Natureza.

Regresso a um caminho. Percorro o carreiro íngreme que conduz a um local repleto de Paz. Encontro-me frente a frente com uma anciã de longos cabelos grisalhos que me olha. Meu Deus como me olha. Sinto-me de regresso a casa.

Mais acima existe outro caminho. Quando quiseres, quando puderes…

Olho para o espelho e dou-me conta que o meu cabelo cresceu.