A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo
….
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência __
….
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso
Porém obstinada eu invoco -- ó dividido --
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto
Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Aqui o enigma que me interroga desde sempre
É mais nu e veemente e por isso te invoco:
"Porque foram quebrados os teus gestos
Quem te cercou de muros e de abismos
Quem derramou no chão os teus segredos"
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
E a sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti
No estio deste lugar chamo por ti
Que hibernaste a própria vida como o animal na estação adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro pr'a melhor ver
[ recua
E quiseste a distância que sofreste
Chamo por ti -- reúno os destroços as ruínas os pedaços --
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros
Porém aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse
Sophia Mello Breyner Andresen
Se todo o ser ao vento abandonamos
ResponderEliminarE sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos
Sophia Mello Breyner Andresen ;)
👏👏👏👏
Eliminargosto muito
ResponderEliminar;)