quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Sê Bem Vindo 2010


cresci no meio de palavras
escritas, caladas, inventadas
aprendi que amar rima com aceitar
liberdade com solidariedade
aprendi que olhar para fora é sonhar
e olhar para dentro é despertar
por isso sonho acordada
quantos poemas tem a vida?
talvez o número de passos que damos
todos os dias, todas as horas, todos os Anos.

domingo, 27 de dezembro de 2009

arte poética



o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se mão de criança ou tu, mãe,
que dormes e me fizeste nascer de ti para ser palavras
que não se escrevem, lê-se silêncio, sim, tantas vezes,
poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa,
silêncio do teu olhar de doce menina silêncio ao domingo
entre as conversas, silêncio depois de um beijo
ou de uma flor desmedida, o poema não é esta caneta
de tinta preta, não é esta voz, a letra p não é a primeira
letra da palavra poema, o poema é onde eu fui feliz
e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia
a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p
e comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal,
o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, não é a raiz de uma palavra
que julgamos conhecer porque só podemos conhecer
o que possuímos e não possuímos nada, o poema não é a palavra
poema porque a palavra poema é uma palavra,
o poema é um olhar perdido na noite
sobre os telhados na hora em que todos dormem
o poema não tem estrófes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com
grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas,
o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe
porque me olhas, o poema é o teu rosto,
eu, eu não sei escrever a palavra poema,
eu, eu só sei escrever o seu sentido.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

poema do menino Jesus


Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
...
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
...
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

domingo, 20 de dezembro de 2009

as palavras


São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memórias.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes, leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta?

Quem as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade