Naquela altura devia ter uns seis ou sete anos. Era Verão. Foi o Verão mais quente que guardo na memória. O calor era a desculpa perfeita para todas as tardes sair de casa rumo à Praça do Rossio. Corria de braços abertos qual avião que ensaia os seus primeiros voos, assustando os pobres pombos que placidamente debicavam o milho e os pedaços de pão lançados pelos velhos que descansavam as suas vidas nos bancos de pedra.
Cansado e rouco costumava, depois, sentar-me na fonte a baloiçar os pés e a mergulhar os dedos das mãos dentro da água que por algum feitiço dos deuses estava sempre gelada. Como era bom! Assim como eram as conversas com a Sabedoria, com a Força, com a Justiça e com a Temperança. Não se espantem, não! As estátuas da fonte conversavam comigo ou melhor eu conversava com elas num entendimento subtil, simples e único. Atrás de mim esquecia regras austeras trabalho autoridade sacrifícios sonhos roubados... invisibilidade.
Falava enquanto passeava os olhos sobre as gentes que seguiam. Um homem que corria atrás do cão que escapava da trela um chapéu que voava da cabeça de uma criança que ria uma mulher que tropeçava nas pedras da calçada… coisas simples…
Foi num desses momentos de conversas soltas e olhares distraidos que a vi.
Andar encurvado saia comprida rosto escondido mão estendida. Mão estendida. Rosto escondido. Mão que se recolhia quando alguém tentava depositar nela algumas moedas. Rosto que se aproximava e pronunciava algumas palavras.
Espanto! Espanto era o que via refletido no rosto das pessoas. Depois depois rapidamente se afastavam como se fugissem de alguma coisa.
Não fui logo ter com ela. Não porque não morresse de curiosidade mas uma espécie de temor invadia-me.
Voltava todos os dias ao Rossio para a ver. Deixei de correr atrás dos pombos. Deixei de conversar com as estátuas. Ficava de longe a observar a minha mendiga. Como um filme que chega ao fim e voltamos a rebobinar.
Dia 15 de Julho (engraçado como passados tantos anos nos recordamos das datas precisas) não fiquei na fonte. Aproximei-me dela com umas moedas na mão. De rosto escondido por longos cabelos negros fez o gesto que eu conhecia de cor. Recolheu a mão. Aproximou o seu rosto do meu e murmurou “não quero dinheiro. só quero um olhar. só quero um pouco de ternura”
Um arrepio percorreu todo o meu corpo. Olhei para ela. Não vi a pele enrrugada não vi as cicatrizes não vi o cabelo desalinhado. Vi somente os seus olhos. Quando ela olhou para mim o tempo deixou de existir. “há muito muito tempo Alguém olhou para mim e me deu muita muita ternura. procuro desde então novamente esse olhar. procuro desde então novamente um pouco de ternura”.
Um arrepio percorreu todo o meu corpo. Olhei para ela. Não vi a pele enrrugada não vi as cicatrizes não vi o cabelo desalinhado. Vi somente os seus olhos quando ela olhou para mim. Um abismo de serenidade e sofrimento agitação e tranquilidade. Um abismo de calor. Intenso. Profundo
Não sei quanto tempo se passou não sei quanto tempo estive preso naquele olhar.
Quando me dei conta corria corria corria… fugia fugia fugia…
Nesse Verão nunca mais voltei à praça do Rossio. Nesse mesmo ano mudamos de casa mudamos de país. Mudamos de vida?
Cresci e esqueci a história da mendiga. Quer dizer de quando em vez voltava lá nos meus sonhos. Ao princípio continuava a fugir depois com o passar dos anos fui ficando… era como se o calor daqueles olhos fosse derretendo uma parte de mim feita de gelo.
O resto da minha vida não tem nada que contar. Fiz o que todos esperavam que fizesse. Fiz o que todos não esperavam que fizesse. Percorri muitos caminhos… conheci muitas pessoas…
Hoje novamente sozinho regresso à cidade natal. Passeio na praça do Rossio sento-me na fonte saúdo a Sabedoria a Justiça a Força a Temperança. Mergulho as mãos na água gelada. E procuro-a!
Caminho com passos lentos e olhar erguido em direcção ao terreiro do Paço. Espraio-me na contemplação do rio e sem pensar no que faço estendo a mão. Volto aquele dia. Volto ao abismo daquele olhar. E finalmente entendo.
Por isso se um dia passarem por Lisboa junto ao Rossio ou no terreiro do Paço e virem de mão estendida um homem de meia idade cabelos grisalhos olhar ora atento ora perdido por vezes rodeado de uma multidão de crianças por vezes completamente sozinho não se espantem não se assustem. Que sou eu. Que estendo a mão. Para oferecer a quem passa um pouco de ternura.
Skynet está próxima
Há 3 semanas
Me gusta, sinceramente me gusta mi bella Aprendiz.
ResponderEliminarUna mirada vale una vida, ¿verdad?
Jan solo Jan
Mas é tão dificil ver no coração. Só o amor nos dá esses olhos.
ResponderEliminarverdade Jan verdade
ResponderEliminaro olhar que te vê verdadeiramente vale uma vida
fico contente por teres gostado
kendopitecus meu querido mas é esse olhar que vale a pena não?
lindo... lindo.
ResponderEliminarGracias linda
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